A estória a seguir foi um sonho,
intenso, longo, real... Foi doloroso e, por isso, relutei em escrevê-lo. Talvez
pareça confuso em algum momento e, por certo, será mesmo: A confusão mental que
eu sentia. Uma amiga disse que eu tive um “desdobramento espiritual”. Considerei
conveniente intitulá-lo dessa forma.
Desdobramento
Eis que acordei em uma boate, em uma
mesa, separado da multidão que dançava freneticamente na parte inferior...
Minha cabeça girava, sentia muita tontura e um mal estar típico de quem acordara
com ressaca. Estava sentado à mesa com três belas moças e, por mais que eu me
esforçasse para reconhecê-las, não conseguia! No entanto, a moça loira de coque
me passava muita confiança, parecia-me familiar, mesmo assim, não me recordava
dela.
Tentei levantar da mesa e
rapidamente elas evitaram o ato dizendo: “Calma
Daniel, você não está bem”. O fato de elas saberem o meu nome era um
indicativo de que eu não havia dormido ali por um acaso, logo, devia fazer
parte daquele grupo... Apenas não sabia como tinha chego lá e, realmente, não me
lembrava de ter bebido, tão pouco ao ponto de não lembrar com quem estava. Pedi
para que me trouxessem água, a sede só não era mais perturbadora que a maldita
sonolência.
Logo após saciar aquela sede
descomunal, notei que, ao longe, um homem vinha em nossa direção gritando e
apontando para a nossa mesa. Eu não entendia o que ele dizia, mas não sabia se
era devido ao som alto ou se ele falava outra linguagem. O fato é que ele se
excedeu tanto que foi retirado por brutamontes seguranças assim que se
aproximou de nossa mesa.
As moças demonstraram grande
preocupação e rapidamente fomos retirados da boate pelos fundos, orientados por
outros seguranças. Quando saíamos, fui colocado no banco traseiro de um enorme
carro preto e, ao olhar pelo vidro, vi quando os seguranças jogaram para fora o
homem que tentara nos agredir no recinto. Ao notar que éramos nós que evadíamos
do local, ele sacou rapidamente uma arma. Três tiros foram disparados. Uma das
balas estilhaçou o vidro traseiro e... Tudo ficou escuro.
Eu não havia sido atingido. Quando
acordei, observei que estávamos em uma estrada estreita, escura, onde só
podíamos ver o que os faróis iluminavam. Notei que a condutora estava sonolenta
e me propus a assumir o volante, tendo sido concedido após aprovação com o
olhar da loira de coque que estava no banco do passageiro. A motorista encostou
o carro, descemos para a troca, mas fiquei em estado de alerta constante,
sempre com a sensação de que estava sendo observado. Ao assumir o volante,
fui orientado: “Basta seguir o GPS”.
Dirigi por horas e horas, o sol
foi surgindo entre as montanhas, uma leve névoa se formava entre as gigantescas
árvores ao redor da pista... Pouco antes do amanhecer estávamos entrando em uma
bela cidade, de arquitetura futurista, muito clara e populosa. Aos chegarmos ao
centro da cidade, notei que conhecia o coreto daquela praça, mas estava
diferente, como se o tivessem ampliado e reprojetado, mas sem mexer em sua
estrutura original. Seria possível que eu estava na minha cidade natal? Enfim
tive a confirmação que era minha cidade ao passar por uma velha casa próxima ao
centro, era a Senhora Amália debruçada na janela a observar o movimento. Mas (como
e) o que havia acontecido com a cidade?
O GPS apontava para eu entrar em
um enorme edifício, todo de vidro prateado, lindo, majestoso... Desci uma infindável
rampa em forma de caracol até que chegamos a um amplo salão. As moças desceram
e dirigiram-se firmes até a única porta do local, vestindo jalecos brancos. Por
não conseguir alarmar aquele carro “diferente”, fiquei para trás.
Quando abri a porta me deparei
com um corredor comprido, piso brilhante, muitos vidros espelhados e portas,
muitas portas. Adentrei a primeira porta e deparei-me com uma imagem chocante!
Eram muitas pessoas em macas! Estavam estáticas, entubadas, com soros, máscaras
de oxigênio... Pensei: Que crueldade é essa? Um senhor em uma das camas me
notou, sem forças para falar, visivelmente debilitado, estendeu a mão com dificuldade
como se pedisse ajuda. Fui até ele e segurei-lhe a mão no intuito de passar-lhe
alguma segurança, mostrar que não estava sozinho... Mas algo muito estranho
aconteceu!
Aquele senhor abatido, de
olheiras profundas e respiração dificultosa começou a corar novamente, suas
olheiras foram esmaecendo, seus lábios retomaram a cor e, num movimento
retirando sua máscara de oxigênio, disse em alto e bom tom: “Obrigado”. Com o susto tomado, soltei
sua mão instantaneamente e corri em busca das moças que ali haviam me deixado.
Eu angustiava por respostas!
Após passar por muitas portas,
sempre com o mesmo cenário de filme de terror, encontrei-as em uma ampla sala
no fim daquele corredor. Dirigi-me à moça de coque, afinal, pelos indícios ela
deveria ser a superiora no local. Perguntei-lhe “O que é isso aqui? Por que essas pessoas estão em macas e entubadas?
Por que EU estou aqui?”. A moça se aproximou e, vendo a angústia em meu
olhar, disse: “Trouxe você de volta para
fazer valer todo o sacrifício de nosso pai, Daniel”. Sem entender
absolutamente nada – não fazia sentido - disse a ela que estava enganada, pois eu
não era seu irmão! Disse a ela que eu possuía quatro irmãos, mas de um família
humilde, de cortadores de cana... Ela me olhou profundamente nos olhos e disse “você morreu”. Fiquei alguns segundos
pasmo, tentando processar tal informação.
Me passando toda a confiança nas
palavras ela me disse: “Nosso pai foi um
brilhante cientista, nos criou a partir de seu gene para um bem maior. Na
época, indignados com a possibilidade de uma criança não ter direito à uma vida
normal, sequestraram você e deixaram na porta de uma família em uma fazenda.
Esta família registrou você como deles e nosso pai nunca te encontrou. Você
viveu uma vida normal até ter sido vítima de uma fatalidade no percurso de sua
existência. Mesmo sem reagir foi baleado em um assalto e não resistiu”. Irritado,
gritei a ela “MAS EU ESTOU AQUI!ESTOU VIVOO!”.
De maneira simples e direta ela disse “Você
é um clone! Não foi fácil chegarmos até seu paradeiro e, infelizmente, tarde.
No entanto, utilizamos de nossa engenharia para recriá-lo, mas não sabíamos se
ou o quanto suas memórias o acompanhariam. Na tentativa de recriar o último
local que você viu, o levamos para despertar na boate. Foi ali que você morreu
e, ali, despertou novamente para a vida”.
Eu morri. Morri duas vezes, pois ESTAVA
MORTO ALI! Mãe... Pai... Quanta dor, quanta angústia! Corri... Corri muito! Não
fui impedido. Subi aquela rampa aos prantos, sem ar, sem nada... Lembranças de
uma infância feliz, de muitos amigos, dos irmãos, sobrinhos... Todos mortos. As
lágrimas me afogavam... A saída! A cidade! Continuei a correr. O coreto do
jardim estava ali, mas realmente não era o mesmo. Ar! Precisava de ar! Queimava-me
o peito, queimava-me a alma “Por que
Deuuus?”.
Foi quando me dei conta de que eu
havia passado pela Dona Amália ao entrar na cidade. Dirigi-me rapidamente ao
sobrado e eis que a encontro no segundo andar, na janela como sempre, e meu
pulmão enche-se, de esperança. Grito “Dona
Amália, pelo amor de Deus me ajude, por favor!”. Lágrimas engoliam minhas
palavras. Ela fez um gesto com a mão para que eu a esperasse e desceu as
escadas laterais. Quando chegou bem próximo, vi que não era ela, mas alguém
muito semelhante. Ela me disse “De que
você me chamou? Amália? Esse era o nome da minha bisavó”. Realmente a
bisneta parecia-se muito com ela, fisionomia, cores de roupas, cabelos e o estranho
hábito de ficar na janela. O gene realmente carregava informações de gerações a
gerações. Pedi desculpas àquela senhora e sai sem muitas explicações, afinal, o
que eu diria? Voltei rapidamente ao prédio onde estava aquele tipo de clínica, mais
do que nunca precisava de respostas!
Ao chegar à clínica, a moça me aguardava
- sentada e calma. Aproximei-me e, agitado, perguntei “Você me disse que eu tinha que fazer valer o trabalho de nosso pai, por
isso me trouxe de volta, o que é?”. Ela levantou-se devagar, foi até um
vaso com uma delicada planta próximo de uma coluna que sustentava a sala, tirou
sua luva e tocou a planta. Eu não podia acreditar no que meus olhos me
mostravam! A pequena planta cresceu majestosamente e envolveu rapidamente toda
a coluna!
Fiquei em choque. Após alguns
segundos de pura confusão mental me reestabeleci, olhei para ela e disse “Por Deus, você tem um dom!”. Ela me
olhou e, com um sorriso singelo, me disse “Não
Daniel, nosso pai me fez assim, assim como você! Você também tem um dom e é por
isso que lhe trouxemos de volta, para terminar o que nosso pai começou. Sozinha
eu não consigo.”. Admirado com a afirmação, exclamei “Não. Eu não tenho nenhum dom.”.
Firmando-me o olhar, com toda a
convicção ela disse “VOCÊ É A CURA PARA O CÂNCER”.